ciclocidade

O paulistano que sempre diz não

Por que os moradores de São Paulo protestam contra ciclovias, metrô e museus, elementos positivos em qualquer outra cidade?

Acontece em São Paulo um fenômeno intrigante. De tempos em tempos um abaixo-assinado acaba tendo tanta ou mais repercussão que uma iniciativa da Avaaz.org contra a mudança climática. Essas petições, geralmente assinadas por moradores endinheirados, viajados e com diplomas universitários, não pedem mais segurança nas ruas, nem salários dignos para seus empregados, nem a interrupção do trânsito nos fins de semana para poder passear, nem mesmo o fechamento de enormes shoppings que asfixiam a vida do bairro. O que querem é acabar com aquilo que moradores de qualquer cidade do mundo gostariam: estações de metrô, ciclovias, ônibus mais rápidos e, agora, um museu.

Dizem que essas coisas atraem gente não tão viajada e com menos dinheiro, gente diferente, vendedores ambulantes e ônibus com crianças. Ou quase pior: afastam de suas vias, restaurantes e butiques o cidadão exclusivo, como advertia anos atrás aquela cabeleireira de Moema angustiada ao ver sua rua pintada de vermelho: “Onde vou colocar a minhas clientes milionárias que vêm com seus carros importados?! Acha que vão vir de bicicleta?!”.

Os moradores dos bairros ricos sentem-se inconformados, desprotegidos e protestam estacionando seus carros no ‘tapete’ vermelho destinado às bicicletas, desabafam no facebook contra os farofeiros e mobilizam-se em busca de assinaturas. O que acontece com o paulistano?

“Esse é um sintoma da elite. Essas regiões – Moema, Higienópolis, Jardim Europa – sempre foram protegidas pela polícia. O fato de uma nova classe média, agora com algum dinheiro, tomar a cidade, para eles significa insegurança”, diz Altair Moreira, do Instituto Polis, uma ONG que defende cidades sustentáveis e mais democráticas. “É um fenômeno novo e importante no Brasil, a população da periferia e de outros bairros não tão privilegiados está assumindo a cidade como um todo, enquanto gera esse incômodo na elite, que não está acostumada a compartilhar seu espaço”.

Contra essa elite foi organizado no sábado um “churrasco de gente diferenciada”. Quase uma centena de pessoas plantou-se na rua da idosa que liderou a coleta de assinaturas contra o suposto caos que o Museu da Imagem e do Som (MIS) gera aos ilustres moradores do Jardim Europa, um bairro com casas que têm mais estrutura e funcionários que muitos condomínios. Os diferenciados comeram farofa, gritaram contra o preconceito e tocaram música. Mas os ricos promotores da iniciativa estavam passando o fim de semana fora, de modo que só ouviram a gritaria os agentes de segurança encarregados de cuidar do patrimônio na ausência dos patrões.

“O Brasil ainda não desenvolveu essa noção de espaço público. Perdura a característica de considerar que o espaço público é um espaço privado. As ciclovias, o MIS, o metrô em Higienópolis deixam claro que existe uma parte da elite da sociedade que não quer ver o espaço público se transformar em algo de todos, afirma Emerson Ricardo Girardi, professor de sociologia da FAAP.

Sirva de consolo que não se trata de algo exclusivo do Brasil, nem de São Paulo: moradores com raiva das ciclovias existem até em Nova York. É o que ficou demonstrado em 2011 quando os protestos de um grupo de moradores chegaram ao New York Times. A matéria foi intitulada: “Desenvolvimento verde? Sim, mas não no meu quintal”. Eram progressistas e ecologistas, mas queriam acabar com uma ciclovia, que continua lá.

“A cidade organizou-se de uma forma individualista e privatista, tendo em mente a predominância dada ao automóvel. Uma parte da sociedade acostumou-se durante muito tempo a privilégios que não lhe correspondiam. É um problema para eles porque os iguala socialmente. Nessa questão, acho que a ideia de distinção é central, até agora se distinguiam por viver em um espaço determinado, privilegiado, que começa a ser usado por todos. Essa elite que se queixa tem uma grande dificuldade em lidar com o diferente e o espaço público”, diz Alexandre Barbosa Pereira, antropólogo e professor da Unifesp.

Enquanto os ânimos do churrasco murchavam e algum morador atendia os jornalistas pelo interfone de sua mansão, o jornaleiro negro do bairro respondia espontâneo demais a uma pergunta impertinente: Os moradores daqui são legais?

– Não, claro que não. No máximo dizem “oi” e “tchau” ou mandam o motorista buscar o jornal.

Fonte: Jornal El País – Brasil.

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