Bicicleta não é micromobilidade

A Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo, Ciclocidade, se posiciona a respeito do conceito da ‘micromobilidade’ e sua relação com cidade e a mobilidade ativa. 

Desde a chegada das empresas operadoras das bicicletas compartilhadas em SP – em meados de 2014 – a Ciclocidade vem alertando e cobrando o poder público sobre a importância de incorporar esse serviço à matriz de transportes da cidade, facilitando sua integração tarifária com o transporte público, a intermodalidade e estimulando que estas possam ganhar cada vez mais outras regiões da cidade, em especial aquelas onde há menos opções de deslocamento. 

Sempre nos posicionamos sobre o papel estruturante da Prefeitura nesse tema, seja: 

  • orientando áreas de operação das empresas;
  • promovendo a segurança viária para seus usuários com redução da velocidade dos carros, redesenho das vias e fiscalização ampliada;
  • aumentando a malha cicloviária; 
  • forçando a disponibilização dos dados de viagens que ajudem a orientar novas políticas públicas;
  • regulamentando os serviços a partir da lógica dos cidadãos e cidadãs, entre outros.

O fato grave é que em nenhum desses pontos tivemos avanço relevantes nos últimos 3 anos. Todas as políticas de estímulo e proteção à mobilidade ativa estão paradas no tempo ou reféns de narrativas pontuais, enquanto as mortes no trânsito invertem sua tendência de queda e voltam a subir gradativamente ano a ano. 

Desde 2012 está em vigor a Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) cujas diretrizes orientaram a criação do Plano Municipal de Mobilidade (PlanMob 2015) que inclui prioridade para pedestres, bicicletas, transporte coletivo e novas tecnologias. Mais recentemente temos o Plano Cicloviário, o Estatuto do Pedestre, o Decreto de Calçadas e o Plano de Segurança Viária. Todos de alguma forma carecem de vontade política, regulamentação, continuidade ou orçamento.

Dito isso nos surpreende que a chegada especificamente dos patinetes elétricos a São Paulo – que nem de longe pode ser considerado uma política pública capilarizada na cidade – esteja empurrando a discussão para uma disputa secundária por espaço nas calçadas e ciclovias enquanto os automóveis permanecem ilesos, soberanos e protagonistas dos principais problemas urbanos da atualidade com mortes, poluição, ineficiência, prejuízos econômicos e uso desproporcional do espaço público

Paralelo a isso, a fim de regulamentar a atividade econômica dessas novas empresas, está sendo construído o conceito de “Micromobilidade” para dar vazão a esse debate. Segundo o Projeto de Lei (PL 01/2019) de autoria do vereador Police Neto, que propõe a criação de um ‘Sistema de Micromobilidade Compartilhada’: Micromobilidade são todos os modais ativos ou elétricos de transporte individual, disponíveis em modelo público ou privado de compartilhamento, que permitam a realização de deslocamentos de maneira sustentável e alternativa ao veículo automotor, incluindo mas não se limitando às bicicletas e bicicletas elétricas compartilhadas com ou sem estação física.

É importante ressaltar que essa categorização serve apenas para enquadrar a regulamentação das operações dessas empresas, mas que a questão norteadora que deveria embasar qualquer discussão sobre mobilidade urbana continua sem perspectiva de respostas: 

Em que momento vamos restringir o uso do automóvel particular a fim de garantir espaço, segurança e equidade para a mobilidade ativa?

Pedestres e ciclistas correspondem, juntos, a quase 40% dos deslocamentos da cidade de São Paulo (Pesquisa Origem Destino Metrô/SP) e também os que mais morrem no trânsito exercendo seu direito fundamental de ir e vir. Sabemos que pedestres e ciclistas são a base do transporte coletivo e que qualquer solução para o setor de transportes vai passar invariavelmente por essas três categorias, pedestres, ciclistas e transporte coletivo.  

Pedestres e Ciclistas não são micromobilidade, são Mobilidade Ativa. 

Depois de tanto pleitear a saída da categoria dos “não motorizados” não vamos cair nas armadilhas da “micromobilidade” que escondem por trás de narrativas modernas e tecnológicas a necessidade de regulamentar um mercado, a partir das necessidades dessas empresas e criar regras para punir usuários. 

Acreditamos que se as bicicletas compartilhadas são encaradas como “micromobilidade” porque estão relacionadas aos conceitos de “primeira e última pernas” (first-last mile) é simplesmente pela escolha limitante do modelo adotado por essas empresas e suas operações. 

Para nós, da Ciclocidade, a bicicleta compartilhada tem muito mais potenciala ser explorado de suprir deslocamentos maiores e estruturantes, principalmente nas regiões com menos acesso ao transporte de massa. Restringir às definições dadas por empresas que operam na Zona Oeste é distorcer o conceito.

Outro ponto que nos preocupa é a lógica do “deslocamento sustentável”, pois ainda é muito cedo para concluirmos que ‘patinetes substituem viagens de carros’ e os dados que afirmam isso não são abertos nem públicos para que possamos fazer novas análises e cruzamentos imparciais. Ademais, a concentração da operação restrita a apenas parte da cidade e o tempo necessário que ocorram  mudanças estruturais no comportamento de escolha modal não permitem qualquer estudo chegar a certas conclusões ainda. 

Além disso é fundamental compreender todo o ciclo de vida das baterias e outros componentes, da produção até seu descarte, antes de afirmarmos que esses equipamentos são modos de transporte “sustentável”. 

De qualquer forma, mesmo com todos esses adendos preferimos, por hora, reiterar a posição já publicizada pela organização Cidadeapé de que “modos ativos e/ou limpos são bem-vindos como alternativas de transporte, desde que incorporados ao sistema com segurança e respeito”.

Compreendemos que a fragilidade dos usuários desse veículo se assemelha à de pedestres e ciclistas na cidade e não acreditamos que obrigar o uso de capacetes ou instituir multas pela circulação deles em calçada seja efetivo para reduzir conflitos e promover a segurança viária. 

A Ciclocidade está monitorando o desenvolvimento de políticas e regras para patinetes em cidades da Europa e dos Estados Unidos. É comum encontrar o debate sobre a disputa do espaço, mas a diferença em relação ao Brasil é que aqui precisamos pactuar algo anterior aos patinetes, que é a proteção aos modais ativos com infraestrutura adequada e acalmamento de tráfego. Enquanto que em muitas das cidades do estudo, há coerência na aplicação de conceitos da Visão Zero.

  • O que a prefeitura de SP tem feito de efetivo para incorporar patinetes na cidade com segurança? 
  • Está reduzindo velocidades especificamente nas áreas que permitem operação das empresas, e promovendo cultura de velocidades mais baixas em toda a cidade? 
  • Está ampliando e qualificando as calçadas e ciclovias? Ou só estão jogando eles nas poucas infraestruturas cicloviárias sem qualquer tratamento para acalmar o trânsito?

Sem intervenções significativas e sem combater os problemas gerados pelos automóveis será difícil acreditar que as estruturas atuais sejam capazes de atender a uma nova demanda por mobilidade inteligente.  

Foto: José Cordeiro

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