Contribuição em consulta pública – Concessão rodoviária Piracicaba / Panorama

A Ciclocidade, por meio do Grupo de Trabalho “GT Rodovias”, e a União de Ciclistas do Brasil (UCB) irão protocolar durante consultas e audiências públicas, contribuições para o Projeto de Concessão (01/2019) do sistema rodoviário do Lote Piracicaba – Panorama, que abrange trechos de 12 rodovias e atravessa 62 municípios das regiões de Piracicaba, Rio Claro, Jau, Bauru, Marília, Assis e Panorama.

 
Reprodução/ G1
 
O edital de concessão disponível no site da ARTESP apresenta-se com informações insuficiente em relação a criação de infraestrutura para bicicleta e descumpre, assim, o Código de Trânsito Brasileiro, diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana e o Plano Cicloviário do Estado de São Paulo (Decreto nº 63.881 / 2018).
 
Segundo a carta: “A minuta do contrato (e anexos) da concessão, de 1.201 km de rodovias, com prazo de 30 anos e investimentos de R$ 9 bilhões, apesar de prever 417 km de duplicações, diversas novas vias marginais, novos acostamentos, anel de contorno e alças de acesso, simplesmente não traz nenhum projeto previamente estruturado, contínuo e coeso de infraestrutura cicloviária, dedicando apenas uma página do Anexo 7 (dos Serviços de Ampliação) à esse tema, com disposições vagas a respeito de critérios para implantação de ciclovias e relegando a definição concreta dos trechos para um momento posterior, quando do início da concessão.”
 
Além de identificar pontos críticos do edital para a mobilidade ativa e sustentável, o texto faz ainda uma análise do cenário de transportes no Estado de São Paulo em relação as mortes no trânsito e ao impacto que teríamos para a qualidade de vida dos paulistanos se superassemos a lógica de investimentos públicos que priorizam ha décadas o automóvel.
 
Quer participar das audiências públicas e fazer parte do GT Rodovias? Escreva para contato@ciclocidade.org.br 
 
Abaixo, o texto completo.
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São Paulo, 11 de março de 2019

Contribuições da sociedade civil organizada para a Concessão 01/2019 de rodovias do Lote Piracicaba – Panorama, no Estado de São Paulo.

A Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo (Ciclocidade) e a União de Ciclistas do Brasil (UCB) vêm, por meio deste documento, contribuir com o processo democrático de consultas públicas relativas ao Projeto de Concessão do sistema rodoviário do Lote Piracicaba – Panorama, que abrange trechos de 12 rodovias e atravessa 62 municípios das regiões de Piracicaba, Rio Claro, Jau, Bauru, Marília, Assis e Panorama.

Iniciamos esta contribuição voluntária registrando nossa insatisfação com o tratamento incipiente dado à modalidade bicicleta na concessão em questão – primeira da atual gestão e primeira após promulgado o Decreto nº 63.881 / 2018, que estabelece o Plano Cicloviário do Estado de São Paulo. O decreto, que regulamenta a Lei nº 10.095, de 26 de novembro de 1998 – até então ignorada pelo executivo – representou um passo importante, ainda que tardio, na inserção jurídica do transporte cicloviário nas políticas públicas estaduais.

O decreto determina, por exemplo, que todas as concessões, licitações e obras de rodovias estaduais em andamento ou posteriores a ele contemplem um planejamento cicloviário estruturado, feito a partir de reivindicações da sociedade civil, estudos técnicos e com a participação do Ciclo Comitê Paulista (instaurado em 2018). É urgente que o governo adira de forma séria às disposições deste decreto e que São Paulo passe a olhar para a mobilidade ativa e sustentável de forma integral e transversal em suas licitações, projetos e políticas públicas em geral. Ademais, é mais que urgente reduzir os acidentes de trânsito com ciclistas no estado, que aumentaram 9% em 2018, segundo dados do Infosiga. Entendemos que nenhum acidente de trânsito é aceitável e que o Governo do Estado precisa assumir, assim como feito pela capital, à “Visão Zero” de forma realmente comprometida – o que passa, inevitavelmente, por uma postura proativa e sistemática de planejamento e implementação de estruturas seguras de circulação de bicicletas e pedestres nas rodovias. Apresentaremos detalhadamente, a seguir, os motivos pelos quais entendemos que a licitação apresentada nesta consulta pública não satisfaz, sequer minimamente, essas expectativas.

A minuta do contrato (e anexos) da concessão, de 1.201 km de rodovias, com prazo de 30 anos e investimentos de R$ 9 bilhões, apesar de prever 417 km de duplicações, diversas novas vias marginais, novos acostamentos, anel de contorno e alças de acesso, simplesmente não traz nenhum projeto previamente estruturado, contínuo e coeso de infraestrutura cicloviária, dedicando apenas uma página do Anexo 7 (dos Serviços de Ampliação) à esse tema, com disposições vagas a respeito de critérios para implantação de ciclovias e relegando a definição concreta dos trechos para um momento posterior, quando do início da concessão. Por fim, ainda condiciona essas possíveis implantações a um levantamento prévio de demanda a ser feito pela própria concessionária. Segundo o item 3.3.16 (que trata sobre ciclovias) no Anexo 07 da minuta contratual, a concessionária deveria, em até 360 dias do início da concessão, “apresentar um levantamento de todos os trechos onde for verificada a circulação de ciclistas”, os quais, então, estariam sujeitos a receber ciclovias, conforme critérios de volume de fluxo existente. Esse tratamento coloca, sem embargo, a mobilidade sustentável em uma posição totalmente secundária e à mercê da boa-fé e proatividade da própria concessionária, que, por definição, não teria nenhum interesse econômico na implantação dessas estruturas, uma vez que o modal não gera receitas tarifárias para a mesma, implicando apenas em obrigações adicionais. O resultado prático desse tipo de formatação contratual já é conhecido: quando muito, a implantação de trechos curtos e desconexos de ciclovias, não necessariamente refletindo o interesse dos ciclistas (demanda atual e principalmente a demanda reprimida), integrados ao transporte coletivo e que, no fim das contas, não fazem nada por mudar os hábitos, estimular o uso, salvar vidas e dar eficiência e alternativas à mobilidade no estado.

Para que uma política de estímulo ao transporte ativo e sustentável se verifique, de fato, é fundamental que um planejamento atencioso e sólido seja feito previamente, pelo estado, em conjunto com a sociedade civil. No mínimo, com a participação do Ciclo Comitê Paulista, associações regionais de ciclistas e União de Ciclistas do Brasil. A partir desse planejamento, a execução das obras previstas seriam incluídas como obrigação contratual nas licitações, da mesma forma como já é feito com as obras de melhorias e ampliações para o transporte individual motorizado.

Cabe inclusive ressaltar o quanto que implementar infraestruturas sob a lógica apenas ou prioritariamente para automóveis é um equívoco, hoje mundialmente combatido, mas no qual a gestão estadual parece pretender insistir. É preciso, de uma vez por todas, que o estado de São Paulo inverta essa lógica de investimentos públicos se quiser se tornar mais eficiente e moderno, como um todo, alinhado a princípios globais de desenvolvimento urbano. Não deveria mais ser possível, nem natural, uma licitação rodoviária, como essa, que se volta quase inteiramente para as estruturas de transporte motorizado individual, especificando detalhadamente duplicações, alças de acesso, vias marginais, acostamentos, níveis mínimos de serviço, enquanto dedica apenas uma página, de disposições vagas, para o transporte cicloviário e ainda menos de uma página para as calçadas e circulação de pedestres – modais que juntos compõem as maiores e mais vulneráveis vítimas do trânsito.

Evidentemente somos favoráveis a existência de um tratamento completo, responsável e detalhado para o transporte motorizado. Contudo, se a prioridade, para todo o território nacional, é o transporte coletivo, ativo e a segurança viária para todos, como determina claramente o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e a Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU 12.587/2012), o mínimo aceitável é que as estruturas para pedestres e ciclistas tenham um tratamento ainda mais cuidadoso, detalhado e responsável, desde seus projetos. Essa é a lógica que precisa ser invertida imediatamente na elaboração das políticas públicas estaduais.

Enquanto a priorização de meios de transporte eficientes, sustentáveis e mais seguros ficar só no discurso, sem refletir na priorização de planejamento e de investimentos, São Paulo continuará sendo um estado deficiente do ponto de vista logístico e de mobilidade, dependendo excessivamente do transporte motorizado rodoviário, uma escolha energeticamente dispendiosa, poluente, cara, muito suscetível a acidentes e ineficiente, como um todo. Um equívoco, que se reproduz há décadas tanto no transporte de cargas como no de pessoas. Neste último, especialmente, além de buscar prioritariamente o desenvolvimento de modais sobre trilhos – mais seguros e baratos que automóveis e ônibus -, também seria fundamental integrar as estações e terminais de transporte coletivo urbano e interurbano com uma rede de ciclovias, calçadas e passarelas de qualidade, que conectem distritos, cidades e até regiões inteiras, possibilitando a intermodalidade e estimulando um aproveitamento muito mais racional e equitativo das estruturas implantadas com recursos públicos – seja para mobilidade urbana, lazer e até turismo entre as cidades.

Uma rede contínua, inteligente e conectada de infraestruturas seguras voltadas para os deslocamentos ativos (ciclistas e pedestres) geraria, ainda, externalidades extremamente positivas para aumentar a qualidade de vida dos cidadãos paulistas. A primeira se trata de aumentar os espaços adequados para práticas esportivas, como o ciclismo de velocidade, de longa distância, a maratona de corrida, etc. A ausência de espaços de treino adequados, além de representar um obstáculo para o potencial esportivo do estado e sobrecarregar espaços urbanos não pensados para esses fins – como são os casos do Campus Butantã da USP e da ciclovia da Marginal Pinheiros, ambos recebendo uso intenso por ciclistas esportivos -, ainda acaba por provocar acidentes trágicos nas rodovias paulistas, como o que vimos na Rodovia dos Bandeirantes no início deste ano, onde um pelotão de ciclistas esportivos foi atropelado por um ônibus, resultando em 3 mortes. É muito fácil atribuir esse tipo de ocorrência à imprudência pessoal e pontual dos envolvidos, enquanto uma gestão pública responsável deveria compreender que é uma situação de ausência de infraestruturas adequadas e seguras para ciclistas nas rodovias. Esses conflitos, tanto de formas de uso dos espaço, como de ocorrência de acidentes, são provocados por uma demanda social hoje absolutamente invisível às políticas públicas rodoviárias, mas que tem um grande impacto na qualidade de vida de muitos cidadãos e que, portanto, não pode continuar sendo negligenciada – ao contrário – deveria ser cada vez mais estimulada.

Em segundo lugar, é fundamental compreender o potencial de geração de renda, desenvolvimento econômico e turístico que uma rede de infraestrutura voltada para transporte ativo, em âmbito estadual, traria às regiões. Nesse ponto, é inevitável citar o caso da Eurovelo, rede europeia de mais de 70 mil km de trajetos rurais para bicicleta, boa parte já implantada, ligando 43 países. No continente que mais oferece infraestrutura para bicicletas, são feitas mais de 2,2 bilhões de viagens cicloturísticas por ano, gerando um impacto econômico de 44 bilhões de Euros, segundo um estudo comissionado pelo Parlamento Europeu em 2012.

Mas não é necessário ir tão longe para constatar os impactos positivos possibilitados pelo cicloturismo. Santa Catarina talvez seja o estado com a prática mais desenvolvida e institucionalizada no país, apresentando pelo menos 3 roteiros oficiais e sinalizados especialmente para bicicletas. Esses trajetos perpassam cidades, pontos turísticos e naturais, sendo servidos de hotéis e restaurantes, que geram trabalho e renda para a população. Segundo o levantamento de 2018 “A Economia da Bicicleta no Brasil”, o Circuito Vale Europeu, por exemplo, em SC, tem 290 km de extensão, perpassa 9 municípios, recebe cerca de 8 mil visitantes por ano e conta com 43 hotéis, além de restaurantes e empresas de turismo que oferecem passeios.

São Paulo, por sua vez, tem todas as condições – e, ao que tudo indica, até mais favoráveis – de desenvolver um cicloturismo pujante. Na verdade, ele já existe e só precisa ser estimulado com infraestrutura segura e de qualidade, como, aliás, demonstrou de forma impressionante o Pedal Anchieta, em 2018, quando cerca de 40 mil ciclistas desceram a Serra do Mar em um domingo, percorrendo o trajeto de aproximadamente 60 km entre São Paulo e o litoral sul do estado, no que provavelmente se tornará o maior evento ciclístico não só do Brasil, mas da América Latina. O impacto econômico que isso gerou em Santos, por exemplo, apesar de não ter sido mensurado, pôde ser facilmente constatado pela lotação de bicicletas nos quiosques ao longo de todo o calçadão da praia e pela necessidade de as operadoras de ônibus rodoviários disponibilizarem veículos adicionais naquele dia, que viajaram cheios, de volta à São Paulo.

Ainda por aqui, seria possível também citar o tradicional Caminho da Fé, percurso de peregrinação com mais de 900 km e que pode ser feito tanto de bicicleta quanto a pé. Anualmente, esse trajeto recebe pelo menos 3 mil visitantes e é uma rota que, além de promover bem estar físico e mental para os visitantes, ajuda a construir laços na população, identificação com sua própria região e comunidade, além de desenvolver o ecoturismo. Sendo, esses, apenas dois dos exemplos paulistas possíveis de citar, entre outras rotas que surgiram por uso espontâneo da população, como o Caminho do Sal, Caminho da Luz, etc, fica claro que a demanda de cicloturismo em São Paulo existe, mas é fortemente reprimida pela ausência de estruturas e de apoio institucional que traga segurança para essa prática saudável e economicamente rentável de turismo.

Existe, inclusive, um estudo robusto feito pela Secretaria de Meio Ambiente do Estado que mapeou – com ajuda de dados disponibilizados pelo Strava – as principais rotas cicloturísticas dentro de Parques Estaduais. Tal levantamento está servindo de base para publicação oficial que, em tese, deverá ser lançada ainda este ano segundo informações da própria secretaria divulgadas em 2018 ao Ciclo Comitê Paulista.

Tudo o que foi explanado até aqui pretende evidenciar que a presente licitação de rodovias, divulgada para consulta pública, e suas disposições acerca do transporte cicloviário são totalmente incipientes e incompatíveis com o que se espera do estado de São Paulo, não apenas pela responsabilidade de ser o estado mais desenvolvido do país, mas como um ente federativo que pauta políticas públicas mundo afora. O estado deveria tomar a dianteira no desenvolvimento de uma matriz de mobilidade voltada ao século XXI, mais moderna, segura e eficiente, com a busca incessante pela redução de emissões e de mortes, em busca de uma maior qualidade de vida para sua população, estimulando o transporte ativo, a prática esportiva e o turismo sustentável.

Por fim, como sugestão pragmática, tendo em vista que a licitação em questão já foi lançada, neste caso, propomos que seja adicionado explicitamente, no texto final do item 3.3.16 do Anexo 7 do Contrato de Concessão, que o planejamento das ciclovias a serem implantadas ao longo do período da concessão será feito em até 360 dias do início da mesma, pelo Governo do Estado em conjunto com o Ciclo Comitê Paulista, com a participação de associações regionais de ciclistas, conforme disposto no decreto do Plano Cicloviário Estadual e apresentado à concessionária, quando deverá ser negociado o reequilíbrio financeiro da concessão para abarcar a implantação das novas infraestruturas cicloviárias previstas.

Atenciosamente,

contato@ciclocidade.org.br
contato@uniaodeciclistas.org.br

 

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