branco jundiai

“Não há lógica na busca inútil pela expansão do sistema viário para absorver automóveis”

 

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Luiz Carlos Néspoli, em foto veiculada no site da ANTP.

 

Para Luiz Carlos Néspoli, superintendente da ANTP, a  implantação da malha cicloviária em São Paulo deve ser vista como uma ação pedagógica, feita em uma cidade na qual o automóvel ocupa 78% do espaço viário mas responde por apenas 30% das viagens.

 

Uma introdução necessária

Há três semanas, quando as obras cicloviárias de São Paulo estavam paralisadas por conta da ação movida pelo Ministério Público do Estado, a Ciclocidade entrevistou o superintendente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), Luiz Carlos Néspoli, ou Branco, para ouvir a opinião de um técnico sobre as alegações contidas no processo da promotora Camila Mansour Magalhães da Silveira.

Esta semana, o jornal O Estado de S.Paulo publicou um editorial chamado “Ciclovia – delírio e realidade”, em que critica a proposta do Plano Municipal de Mobilidade Urbana paulista de implantar de 1.500 km de ciclovias nos próximos 15 anos. “O peso que a bicicleta pode exercer no sistema de transporte”, diz o editorial, é “sabidamente muito menor do que alardeia a Prefeitura”, o que não justificaria os investimentos feitos assim como os programados para o modal.

Assim como o Ministério Público do Estado (MPE), os editorialistas do Estadão esqueceram de falar com quem anda de bicicleta. Praticamente toda a argumentação contida ali é rebatida na carta-resposta ao MPE, assinada por 31 organizações de ciclistas e da sociedade civil. Entretanto, a publicação dá um ótimo motivo para publicarmos a conversa com Luiz Carlos Néspoli.

Deve-se ressaltar que a entrevista com o superintendente da ANTP fala sobre a ação do MPE, tendo sido realizada por e-mail em 26/3. Porém, como parte da argumentação do editorial é similar à do processo movido na Justiça, torna-se relevante mais uma vez ler seus argumentos, assim como torná-los públicos. Para Branco, o Ministério Público do Estado equivoca-se ao opor a bicicleta ao transporte público de massa e ao questionar sua funcionalidade. “A  implantação da malha cicloviária em São Paulo é uma ação pedagógica”, diz ele, e “toda mudança de hábito impõe revisão de paradigmas”.

Em uma cidade em que o automóvel responde por apenas 30% das viagens, mas ocupa 78% do espaço viário, “a bicicleta é um benefício para toda a sociedade, cujo uso deveria estar sendo estimulado”, afirma. “Mais ainda, a população deveria estar sendo educada por todas as instâncias públicas, especialmente as do Ministério Público”. Branco diz ainda que a bicicleta não compete nem tem o objetivo de competir com os sistemas de transporte coletivo, uma das argumentações centrais na peça apresentada pelo MPE. “A bicicleta é uma opção à mobilidade democrática, equitativa, ecológica e saudável”, argumenta, completando que a adoção de infraestrutura para este modal servirá “para a redução dos limites de velocidade dos automóveis, ônibus, motos e caminhões no sistema viário e, com isso, também permitirá cidades mais seguras para as pessoas”.

Leia a entrevista na íntegra.

 

Entrevista com Luiz Carlos Néspoli, superintendente da ANTP

Ciclocidade: Na ação movida pelo Ministério Público do Estado, a promotora Camila Mansour Magalhães da Silveira afirma que “a bicicleta não é um meio de transporte de massa, de modo que sua eficiência é questionável, pois sua capacidade é ínfima”. O que o senhor acha dessa afirmação?

Branco: Não é papel da bicicleta, em nenhum lugar do mundo, substituir o transporte de massa. Nem é esse o objetivo da cidade de São Paulo. O que se pretende é criar oportunidade para quem deseja utilizar este modo de transporte, contribuindo para a criação de um novo modo de viajar, evitar a poluição, reduzir o consumo de combustível. Mas, para se criar esse novo hábito, é necessário criar a infraestrutura que permita dar maior confiança ao ciclista para fazer sua viagem. A implantação da malha cicloviária em São Paulo é uma ação pedagógica. Na década de 1970, em razão da elevação brutal do preço do petróleo, os governos (federal, estadual e municipal) empreenderam vários programas de desestímulo ao transporte individual. Entre as ações, nasceram os calçadões no centro de São Paulo, o que tornou o centro mais aprazível. Naquele momento, foi uma grita geral. Hoje, todos os vêem como um benefício, sendo que os calçadões acabaram sendo adotados em praticamente todas as cidades brasileiras. Toda mudança de hábito impõe revisão de paradigmas. O uso da bicicleta é um benefício para toda a sociedade, cujo uso deveria estar sendo estimulado e, mais ainda, a população deveria estar sendo educada por todas as instâncias públicas, especialmente as do Ministério Público.

 

Ciclocidade: Na ação, também afirma-se que a implantação das ciclovias está sendo feita sem planejamento ou estudos técnicos.
 
Branco: A Companhia de Engenharia de Tráfego – CET, criada em 1976, introduziu no Brasil os princípios de engenharia de tráfego, e tem realizado nestes quase 40 anos de atividades milhares de intervenções na cidade de São Paulo. Ao contrário do que alega o MP, todas as intervenções da CET, ao longo de sua história, só são implantadas após a execução do projeto de engenharia, que dão base para as empresas contratadas executarem obras nas vias públicas. A CET de São Paulo detém o melhor quadro técnico de engenharia de tráfego do país, sendo reconhecido internacionalmente, inclusive. Para execução de obras em via pública, sejam de organização geométrica, sejam de sinalização horizontal ou vertical, ou mesmo semafórica, são elaborados os projetos, que são registrados em um sistema informatizado, onde recebem a codificação cadastral. Se houver dúvida, é perfeitamente possível observar os projetos executados consultando este sistema.
 
Esclarece-se, ainda, que há manuais de sinalização estabelecidos pelo Contran, onde está prevista a sinalização para infraestrutura cicloviária. Além disso, este conhecimento técnico é matéria da engenharia de tráfego, sendo empregado em inúmeros países, experiências que são conhecidas da CET de São Paulo. Pelo que se sabe, há alguns anos a estrutura organizacional da CET foi alterada, criando-se um departamento específico para programas cicloviários, que reúne técnicos com grande domínio sobre o assunto. Há quase 40 anos a CET pinta faixas para automóveis na cidade de São Paulo, coloca sinalização vertical, semáforos. Por que será que nunca se questionou acerca da existência ou não de planejamento e projeto?
 
Dizer que o que vem sendo feito em São Paulo carece de planejamento e estudos técnicos é desconhecer profundamente a competência da CET de São Paulo, de resto reconhecida internacionalmente. É dar ouvidos a opiniões leigas, disseminadas irresponsavelmente por parte da mídia, que vem tratando o assunto de forma preconceituosa. Ao se implantar as ciclofaixas, nenhuma faixa de tráfego para os automóveis foi suprimida. Caso, numa hipótese absurda, venham a ser suprimidas as ciclofaixas atuais, nada se ganhará na fluidez de trânsito, esta resultado do excesso de automóveis nas vias.

 

Ciclocidade: O senhor concorda com o argumento de que a bicicleta “deixa de ser um modal complementar” e passa a competir com o transporte público quando há uma oferta de transporte de media e alta capacidade, como acontece nos eixos como o da Av. Paulista/ Jabaquara?

Branco: Seja pelas distâncias a vencer, seja pela capacidade de transporte que representa, este modo de viajar não tem o objetivo de competir com os sistemas de transporte coletivo. A bicicleta não se insere no sistema de mobilidade das cidades para suplantar o transporte coletivo. A bicicleta é uma opção à mobilidade democrática, equitativa, ecológica e saudável. Seu uso cada vez mais frequente irá contribuir para cidades mais aprazíveis, menos poluentes e menos ruidosas. Ainda, a adoção de infraestrutura para este modo de transporte se prestará para a redução dos limites de velocidade dos automóveis, ônibus, motos e caminhões  no sistema viário e, com isso, também permitirá cidades mais seguras para as pessoas.

Pode, isso sim, absorver as viagens de automóveis de pequenas distâncias, absurdamente utilizadas pelos seus usuários. A av. Paulista, onde se constrói uma ciclovia, é uma via de ligação de vários corredores viários que a atravessam a Vergueiro, Brigadeiro Luiz Antonio, Augusta, e a Consolação, além de abrigar em seu subsolo uma linha de metrô. Serve de ligação, portanto, entre origens e destinos de viagem e não de destino de todas elas. Na superfície, recebe um tráfego de automóveis e de ônibus de passagem, atendendo a inúmeras destinos, com pessoas oriundas das mais variadas regiões, e muitas delas distantes, as quais já tomaram sua decisão sobre qual modo de transporte utilizar em seu começo de viagem. A ciclovia na Paulista, ao contrário, se prestará a atrair o tráfego de bicicleta das (e para) as regiões mais próximas do seu eixo e tornará a avenida eixo de ligação com outras ciclovias no mesmo raio de alcance.

 

Ciclocidade: Faz sentido compreender o automóvel como o principal modal de deslocamento na cidade frente ao que seria um transporte público “deficiente”, como sugere a promotora?

Branco: O automóvel só responde por 30% das viagens na cidade de São Paulo. Ao contrário, ocupa 78% do espaço viário. Não é possível mais se imaginar que o esgotado sistema viário da cidade tenha possibilidade de absorver taxas crescentes de uso do automóvel. Apenas para ficar nesse exemplo, mas há inúmeros outros, alguém defenderia alargar o corredor formado pela Rua da Consolação, Av. Rebouças e Francisco Morato, desapropriando todos os imóveis desde a Av. Paulista até a Av. Faria Lima? Que benefício haveria uma ou duas faixas adicionais de automóveis? A que custo financeiro, social e político? Não há lógica na busca inútil pela expansão do sistema viário para absorver automóveis.

A fluidez do tráfego na cidade é decorrente do excesso de automóveis e da destinação de uma faixa de rolamento para estacionamento ocioso durante grande parte do dia. Pela engenharia de tráfego, por uma faixa de rolamento passam no máximo 1.200 veículos por hora por sentido. Se cada um deles leva 1,4 pessoas em média (dados da Pesquisa Origem e Destino, do Metrô de São Paulo), esta faixa tem uma capacidade de transporte de no máximo 1.700 pessoas aproximadamente. Este mesmo espaço viário, se utilizado por um sistema de ônibus em via segregada, pode chegar a 20.000  passageiros por hora por sentido.

A alternativa para a melhoria do transporte coletivo tem dois horizontes: um de médio e longo prazo que é a construção de linhas de metrô e de grandes corredores de ônibus; e outro de curto prazo que é a criação de faixas exclusivas de ônibus. Para melhorar o transporte, portanto, este precisa de espaço na via. Ora, não é possível que a sociedade admita que 30% das viagens ocupem 78% do espaço viário. Isso contraria a Lei de Mobilidade Urbana, que tem como uma de suas diretrizes a equidade no uso do espaço público. Se um empreendimento privado gastasse essa energia (infraestrutura, combustível, tempo, etc) para produzir este resultado (congestionamento, poluição, mortes no trânsito), certamente iria à falência, ou seu diretor de planejamento e produção seria demitido sumariamente. Estamos falando de gestão e também de lógica.

 

Ciclocidade: E sobre a argumentação de que a bicicleta “trará consideráveis prejuízos ao modal que ainda é o mais importante para a economia de São Paulo” [o automóvel], também contida no processo do MPE?

Branco: Ao contrário do que se argumenta, o automóvel não é o modal mais importante para a economia de São Paulo. Em estudo realizado pela Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 1999, o fato de os ônibus circularem à velocidade media de 13 km/h devido ao congestionamento dos automóveis, em vez de a 20 km/h que é um padrão internacionalmente aceito, elevava, na época, a tarifa do passageiro em 16%. Nos dias atuais, isso significa que a tarifa em São Paulo poderia ser de R$ 2,90 e não R$ 3,50. A tarifa atual faz o passageiro gastar pelo menos R$ 1,20 a mais por dia.

Qual o custo social disso quando se considera que milhões de passageiros estão pagando este acréscimo diariamente? E esse é apenas um dos aspectos. Considere também o da poluição, cuja principal contribuição vem das emissões dos automóveis. Segundo dados sobejamente conhecidos e apresentados pelo Dr. Paulo Saldiva, professor e pesquisador da Faculdade de Medicina da USP, a poluição é responsável por milhares de mortes por ano.

Mas, lamentavelmente, não ficamos apenas nesses dois fatores. Acrescente-se a eles as mortes no trânsito, que em São Paulo representam cerca de 1.400 por ano, sem falar de outros milhares de sequelados a exigir tratamento na rede pública do Estado. Segundo estudos da ANTP e do IPEA, de 2003, o custo médio de um acidente com morte representava R$ 144 mil, a preços daquele ano. Se mantivermos este mesmo valor (o que não é totalmente correto), o custo social do acidente de trânsito na cidade de São Paulo seria de no mínimo R$ 200 milhões por ano. E a quase totalidade deles é provocada por automóveis! E o custo do congestionamento? Ora, de que economia estamos, afinal, falando?

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