logo ciclocidade

Nota em repúdio à matéria da TV Record

logo ciclocidade

Nota em repúdio à matéria da TV Record

Na última quinta-feria (29/1), a TV Record veiculou a matéria Ciclistas desrespeitam leis de trânsito e geram polêmica, no Jornal SP no Ar. Tendenciosa, sensacionalista e atendendo a uma pauta fechada, a reportagem é um exemplo de como não se fazer jornalismo.

Ao culpar quem é historicamente vítima de um sistema viário centrado com exclusividade no automóvel, a TV Record reforça o comportamento agressivo e violento contra ciclistas. Isso fere uma diretriz importante do próprio Código de Trânsito Brasileiro, que estabelece a segurança dos modos de transporte a partir das suas relações de força. Ou seja, citando o art.29 do CTB: “os veículos de maior porte serão sempre responsáveis pela segurança dos menores, os motorizados pelos não motorizados e, juntos, pela incolumidade dos pedestres”. Além disso, ciclistas costumam ser excluídos e alijados de políticas públicas que garantam segurança e conforto plenos em seus deslocamentos.

É por isso que a Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo (Ciclocidade) vem a público  agradecer à emissora por nos dar a oportunidade de esclarecer vários os pontos destacados ali e, ainda, clarear conceitual e legalmente os equívocos cometidos ao longo da narrativa. Que esta nota ajude não apenas a TV Record, mas a outras emissoras.

1.
Ao chamar a matéria, o apresentador William Travassos anuncia as supostas irregularidades de ciclistas “passando o farol vermelho, andando onde não deviam”. A chamada é ilustrada por imagens de um grupo de ciclistas pedalando na via local da Marginal Pinheiros. O uso da Marginal Pinheiros por grupos organizados de ciclismo desportivo é uma prática comum, legalizada e permitida pelo Código de Trânsito Brasileiro. Segundo os “Conceitos e definições” do CTB, uma Via de Trânsito Rápido deixa de ser via expressa ao dar acesso a lotes urbanos (no código, “lotes lindeiros”). Isso significa que a pista local das marginais permite a circulação de bicicletas como qualquer outra via. Torna-se desnecessário, portanto, pedir autorização à Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), como erroneamente indica o advogado ouvido pela reportagem aos 2m50s.

2.
Aos 0m53s, a matéria considera um flagrante um ciclista pedalar na calçada. O trecho é acompanhado de um efeito sonoro de tensão, denotando que a atividade oferece alto perigo às pessoas que compartilham do mesmo espaço. Entretanto, como se vê na imagem, o ciclista está em velocidade até inferior à de um pedestre e os riscos que uma bicicleta oferece a alguém a tal velocidade são quase inexistentes. Não à toa, diversas cidades pelo mundo levaram isso em consideração ao criar estruturas públicas compartilhadas entre ciclistas e pedestres. Mesmo em São Paulo já há uma série de infraestruturas similares, mostrando que é possível e compatível tal compartilhamento.

O modo como este tema é tratado na reportagem perde a oportunidade de destacar outro ponto bem mais interessante, que é o de relações mais humanizadas no trânsito. Uma vez que o sistema viário privilegia os modos motorizados, quem se desloca com a própria energia busca alternativas, encorajado pelo fato de ter maior controle sobre as consequências de seus atos. Tal controle provém da baixa velocidade de seus deslocamentos e do gasto energético empregado.

É o caso de pedestres e ciclistas. Ao se locomover, ambos fazem escolhas pensando em sua própria segurança, ou em como encurtar e facilitar seus deslocamentos. Avaliam a economia de energia do corpo, a fadiga e o risco envolvidos. O uso de calçadas por ciclistas é uma dessas escolhas, e é um comportamento é semelhante ao do pedestre quando escolhe atravessar uma rua fora da faixa de segurança.

3.
Na sequência, a reportagem aponta para ciclistas pedalando “fora da ciclovia”. Aqui, vale situar o local escolhido pela gravação. As imagens são da ciclovia da Faria Lima, no trecho próximo à esquina com a Avenida Rebouças. Ora, para quem vem pedalando pela Avenida Eusébio Matoso e quer acessar a Faria Lima, a única maneira é pedalar por um trecho da Faria Lima e acessar a ciclovia mais à frente, uma vez que não há uma estrutura adequada para este cruzamento. A reportagem, portanto, utiliza-se do artifício da edição para deturpar uma cena urbana comum e absolutamente legal, fazendo valer sua intenção de culpabilizar ciclistas por estarem simplesmente pedalando.

4.
“Para piorar estavam sem equipamentos de proteção”. Neste trecho a reportagem comete um equívoco gravíssimo ao presumir que os ciclistas estariam infringindo leis de trânsito ao não utilizar os “equipamentos de segurança”. Ou por má-fé ou por falhas na produção e pesquisa da matéria, a reportagem não levou em consideração quais seriam estes equipamentos obrigatórios e nitidamente presumiu ser o capacete um ítem obrigatório. Polêmico e com eficácia não comprovada, o capacete não é um ítem obrigatório para ciclistas. Os itens obrigatórios, que não foram contemplados pela repórter e pela voz em off, estão elencados no art. 105 do Código de Trânsito Brasileiro. Convem à produção da TV Record, portanto, pesquisar antes de escrever o briefing de uma matéria.

5.
“Infrações comuns e que quase nunca são punidas”. Neste momento a reportagem mostra um grupo de uma dezena de ciclistas pedalando juntos, à noite, todos com luzinhas piscantes de identificação e circulando em um dos bordos da via. Absolutamente corretos e tranquilos, apesar do tom acusatório da voz em off.

6.
“Em caso de falta de ciclovias ela (a bicicleta) deve trafegar sempre em ruas e avenidas pelo lado direito da via”. A passagem da repórter causa espanto e indignação, pois ela cita o Código de Trânsito e reproduz um texto que simplesmente não existe na lei. Convem corrigir a reportagem apontando o texto correto, que diz que a circulação de bicicletas deverá ocorrer nos bordos da pista de rolamento. Como toda pista de rolamento possui dois bordos, é nestes locais que a circulação de bicicletas se dá. E se há faixa exclusiva de ônibus à direita, o bordo passa a ser, além da faixa da esquerda, a faixa de rolamento ao lado da faixa exclusiva de ônibus.

7.
Aos 2min a reportagem apresenta o depoimento do advogado Mauricio Januzzi, falando em nome da Comissão de Trânsito da OAB-SP. Além de reiterar a postura tendenciosa e recriminatória da reportagem, o advogado tece afirmações bastante complicadas. Ao afirmar que o ciclista “não pode trafegar em locais que não são destinados exclusivamente ao uso de bicicleta”, o Sr. Januzzi insinua que apenas vias exclusivas são permitidas aos ciclistas, cometendo não apenas uma perigosa gafe mas contradizendo a clareza de todo arcabouço de legislações que garantem a livre circulação de bicicletas em todas as vias da cidade, excetuando as vias expressas. Um equívoco injustificado e potencialmente violento, pois reforça aos maus motoristas a falácia criminosa de que o ciclista “não deveria estar na rua”.

8.
Aos 2m30s o advogado entrevistado defende multas aos ciclistas dizendo que estes “têm carta-branca para cometer irregularidades e têm a certeza de que não serão punidos”. Ora, no país que ceifa a vida de mais de 50 mil brasileiras e brasileiros por ano nas estradas, rodovias, avenidas e ruas das cidades; no país em que 75% das mortes causadas por veículos motorizados está ligada à ingestão de bebida alcoólica; no país em que o sistema judiciário julga direção alcoolizada e morte como “acidente”, é no mínimo espantoso ver um advogado se referir àqueles que estão excluídos e marginalizados das políticas públicas como sendo os algozes do sistema de mobilidade.

9.
Na sequência, em cima da imagem de um pelotão de ciclistas circulando em uma rodovia, a voz em off anuncia: “outra proibição é a circulação de bicicletas em rodovias, o que frequentemente acontece”. E nós, com interjeição de espanto, perguntamos: com base em que é proibida a circulação de bicicletas em rodovias? Vamos ao que diz a lei, em contraposição ao achismo da reportagem: “É infração (dos ciclos): transitar em vias de trânsito rápido ou rodovias, salvo onde houver acostamento ou faixas de rolamento próprias (grifo nosso)”. Qual a primeira coisa que salta aos olhos na imagem estampada pela reportagem? Ciclistas pedalando em uma rodovia COM ACOSTAMENTO. Não é preciso dizer mais nada, só lamentar os equívocos da reportagem e esperar que um dia eles se retratem.

10.
Mais uma afirmação categórica e equivocada do advogado entrevistado: “esses grupos de ciclistas que andam à noite, nas marginais ou no rodoanel, precisam de uma autorização da CET para circular nestes locais”. As respostas acima já contemplam esta questão, pois já comprovamos ser livre e legal a circulação de bicicletas nestes locais. Pessoas reunidas pedalando juntas – seja para com destino ao trabalho, seja como prática de atividade física – não configuram um evento ciclístico formal, onde normalmente há organizadores, apoiadores, estrutura etc (para estes eventos, sim, é necessário pedir autorização e apoio dos órgãos competentes).

11.
Para cumprir a cartilha do jornalismo e mostrar “o outro lado”, a reportagem entrevistou longamente o Diretor de Participação da Ciclocidade. A longa entrevista, no entanto, não foi utilizada e a edição destacou, deturpadamente, apenas duas falas que, isoladamente, não produzem o contexto necessário de contrapontos aos equívocos formais, conceituais e legais da reportagem.

12.
Para finalizar, a reportagem incluiu o depoimento de um bike courrier que disse usar sempre os equipamentos de segurança que ele considera adequados (que não são obrigatórios e não estão previstos em legislação alguma); e a reporter, em off, apontou o caso deste ciclista como um bom exemplo, “a consciência que sobre em Maurício, falta em grande parte dos ciclistas flagrados arriscando a vida nas ruas de SP”. Mais uma vez as imagens de apoio, que comprovariam esta “grande parte de ciclistas arricando suas vidas”, mostraram somente ciclistas em comportamento legal, tranquilo, respeitoso e adequado.

Para concluir, vimos solicitar a TV Record o reconhecimento público dos equívocos cometidos nesta reportagem e propomos a realização de uma matéria apontando os aspectos positivos do uso de bicicleta, seus benefícios para a cidade e para os cidadãos.

Atenciosamente,

Ciclocidade – Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo

Posts Similares