Nota Pública: Marina Harkot foi vítima da imprudência do motorista e da omissão do Estado
foto: Célia Choairy
Domingo dia 08 de novembro de 2020, a ciclista e pesquisadora Marina Harkot, 28, morreu após ser atropelada brutalmente pelas costas, enquanto voltava para casa, na Av. Paulo VI, zona oeste de São Paulo. O motorista fugiu sem oferecer socorro e só se apresentou para prestar depoimento dois dias após o assassinato, evitando, assim, o flagrante e a possibilidade de verificar sua condição toxicológica e alcoólica, além de reduzir a chance de salvar a vida da vítima.
Algumas das narrativas sobre o assassinato esbarram na questão de gênero, inclusive objeto de estudo e de pesquisas da Marina: a vítima é novamente violentada, desta vez pela opinião pública que questiona suas motivações para usar a bicicleta, para estar naquele local, naquele horário, com aquela roupa, sozinha. Tais questionamentos denunciam, mais uma vez, a violência que mulheres enfrentam em nossa sociedade ao ser negado a elas o direito de circular em segurança pela cidade.
Domingo, 15 de novembro de 2020
TV Globo, Fantástico
Ao sabermos que o atropelamento da Marina seria inserido na pauta do programa da Globo, tivemos a esperança de que a abordagem questionasse com rigor por que o atropelador levou exatamente dois dias para se entregar à polícia ou por que ele decidiu falar à imprensa sendo que diante da autoridade policial ele não explicou os fatos, optando por ficar em silêncio.
Contudo, tivemos a triste constatação da complacência do tratamento dado ao atropelador José Maria da Costa Júnior. Não queremos linchamentos públicos, mas há perguntas que do ponto de vista jornalístico deveriam ter sido feitas.
A matéria apresenta uma narrativa cinematográfica para contar a “triste historinha de um ‘menino’ de carro que cruza a vida de uma ‘menina’ de bicicleta em um dia comum que começa bem, mas que ocasionalmente termina em tragédia”. Tal decisão de espetacularizar a história e o atropelamento constrói um imaginário nocivo de que o que aconteceu com Marina foi obra do acaso, do destino.
Ao transformar tudo em um espetáculo, a matéria minou todos os méritos que trazia ao expor as contradições do motorista, ao apresentar a visão da mobilidade urbana pelas mulheres, ao expor o ponto de vista do que é essa mobilidade e essa cidade gentil que lutamos há tanto tempo. Mas tudo isso foi por terra ao optarem por quase transformar tudo numa ‘ficção bobinha’ de um dia que começou ensolarado e acabou ruim. Sem falar no uso de imagens fora do contexto, mostrando Marina se divertindo e bebendo com amigos, insinuando que aquela era a situação vivida por ela momentos antes de sua morte.
Importante pontuar que essa narrativa de que tudo não passou de um “encontro casual que acabou sendo trágico” reforça a impunidade e não avança na discussão que importa: a de que todas as mortes no trânsito são evitáveis! Não foi acaso, não foi acidental. Foi resultado de uma sequência de erros, do motorista, mas também dos governos – extremamente permissivos a altas velocidades associadas a bebidas alcoólicas – da engenharia de tráfego e do sistema viário que estimula comportamentos agressivos, inseguros e pouco tolerantes à vida e a convivência nas ruas.
Afinal, quem sai ganhando com esse abrandamento dos fatos: o assassino ou a vítima?
A matéria dá ao atropelador espaço da imagem de ‘coitado’, de vítima, afirmando não ter bebido, tampouco visto a ciclista na rua. Conclui justificando a sua omissão de socorro por medo de ser assaltado e terceirizando a sua responsabilidade uma vez que, segundo ele, “havia outras pessoas lá que podiam ajudar mais do que eu”. E foge a mais de 90km/h com risco inclusive de causar outros atropelamentos.
As imagens trazidas pela reportagem escancaram as inúmeras contradições no relato do atropelador e a omissão dos outros ocupantes do carro, cúmplices da tragédia. No entanto, o que deveria gerar um debate nacional sobre a barbárie no trânsito das grandes metrópoles brasileiras virou uma oportunidade para o atropelador – no dia e horário mais nobre da televisão brasileira – justificar o injustificável, buscando empatia da audiência. Porque, ao final, muita gente se identifica com esse comportamento tão conhecido por muitos motoristas, que bebem, dirigem, avançam sinal, não respeitam os limites de velocidade, ameaçam a vida de pedestres, ciclistas, motociclistas e outros motoristas e por vezes, matam, mutilam e, em diversos casos, fogem sem ao menos prestar socorro e reaparecem quando não existe a possibilidade de flagrante e de verificar as condições do motorista no momento do “acidente”.
Sabemos que o julgamento desse caso será difícil, já passamos por julgamentos assim antes e vemos o quanto a justiça é branda para assassinos que usam seus carros como armas. Não podemos permitir que narrativas como a do Fantástico, com o alcance que têm, sejam aceitas para relativizar o comportamento do atropelador e, de novo, culpar a vítima – que já não pode se defender – pela própria morte.
Em nenhum momento a matéria do Fantástico toca no ponto crucial de que existem leis, planos e projetos que se cumpridos evitariam tragédias como essa. Sabemos que Marina não é a primeira e nem será a última. Só nas últimas semanas houve casos semelhantes em outras partes da cidade, envolvendo ciclista entregador que estava trabalhando e ciclista ameaçado dias antes por motorista de ônibus – que concretizou a ameaça. As mortes no trânsito estão espalhadas por toda a cidade e a falta de cumprimento da lei, por todos os agentes, desde o atropelador, ao Estado, por negligenciar a segurança no trânsito tornam todos réus dessa chacina.
Um trabalho jornalístico sério deve cobrar que o Estado seja também responsabilizado por suas escolhas quando estas vão contra dados, estatísticas, indicadores internacionais e políticas públicas que visam a segurança e o bem comum. Pontuando também que há custos e gastos do orçamento público que poderiam ser investidos em outras áreas que não nas morte/atropelamentos evitáveis no trânsito.
Por fim, a matéria do Fantástico perdeu uma oportunidade valiosa de fornecer informação de qualidade a sua audiência, fundamental ao bom jornalismo, que poderia ajudar a cobrar pelas políticas públicas de segurança viária e, principalmente, salvar vidas!
Compactuamos com os valores da família da Marina, que demonstrou uma generosidade sem tamanho em dizer que Justiça pra eles é que os gestores e governos não permitam mais que isso aconteça, que o que precisa mudar é a soberania do carro na rua, não só a condenação desse homem, mas a noção de humanidade e cidadania onde a cidade não pode ser pensada, construída e legislada para quem dirige.
A narrativa do capacete e a culpabilização da vítima.
Sobre o uso de capacete, estudos apontam que embora o seu uso reduza o risco de ferimentos na cabeça, ele não protege o pescoço e seu uso não tem sua eficácia pacificada no meio científico na prevenção às mortes no trânsito. (Elvik, 2011; Teschke K, Koehoorn M, Shen H, et al. BMJ. 2015). Além disso, o uso de capacete por ciclistas, muitas vezes, tem um efeito negativo sobre os motoristas de carro que, ao enxergá-los como mais protegidos, passam mais próximos dos ciclistas. Isso foi medido e os/as ciclistas percebem esse comportamento de risco ao pedalar nas cidades (Walker, 2006).
Por outro lado, é consenso, da física e da engenharia de transportes,que velocidades têm relação positiva com a taxa de mortalidade em colisões, ou seja, quanto maior a velocidade, maior a probabilidade de morte. Tal relação não é linear e essa mesma relação é ainda pior quando um dos envolvidos na colisão for pedestre ou ciclista, como a Marina Harkot (08/11/2020), o João Xavier (04/11/2020), o Bruno Batista (08/06/2020), a Gilgleide Dias (08/06/2020), a Josefa Aparecida (15/02/2020) e tantas outras pessoas que, mesmo não nomeadas pela imprensa, não são apenas estatística e têm nome, história, família, amigos e tinham ainda muita vida pela frente.
É preciso compreender que precisamos adequar as velocidades nas vias à escala humana. É necessário perceber que impactos entre carros e ciclistas/pedestres, em velocidades acima de 50 km/h, a morte é quase certa. Marina Harkot, como tantos outros ciclistas e pedestres, não têm chance em uma cidade desenhada para velocidades acima de 50 km/h: é importante adequarmos a velocidade à escala humana de conservação da vida e não do estímulo à morte.
Agora falando sobre ciclovias e sua necessidade, é importante ressaltar que há cerca de 17000 km de vias e pouco mais de 500 km de ciclovias e ciclofaixas na cidade de São Paulo. É sim reivindicação que sejam construídas mais ciclovias na cidade, no entanto, é inevitável que ciclistas e motoristas convivam em algum momento, afinal é inviável que absolutamente todas as vias da cidade tenham ciclovias segregadas.
De modo algum, as vias que não tenham ciclovias devem ser vistas como “proibidas” para ciclistas ou que uma via que tenha ciclovia deva ser compreendida como de uso obrigatório. Isso porque pode ocorrer muitas situações que impedem o seu uso ou não se mostram a melhor alternativa, como, obras na ciclovia, falta de condições de segurança (de pista, risco de assalto, risco de assédio), falta de iluminação adequada, entre outras. Portanto, ciclovias são necessárias, mas não são suficientes para garantir uma cidade segura e que ofereça às pessoas, de qualquer modo, condições para que se locomovem de e para onde quiserem.
E qual é a solução mágica?
Ela não existe. Porém, a solução possível e sem a qual nenhuma das outras medidas funcionará é considerar os aspectos humanos como centrais dessa conta. Cidades precisam ser projetadas a partir da vida e uma cidade mais acolhedora não deve precisar segregar pessoas para que se respeitem, mas, sim, educá-las para tal. Já passou da hora de aprendermos a conviver nas ruas respeitosamente: pedestres, ciclistas, motociclistas, motoristas de carros, motoristas de ônibus e motoristas de caminhões. Somos todas e todos, cidadãs e cidadãos, que precisamos co-habitar nossas cidades, co-laborar nelas. Essa nota é também um chamado para construção de saídas conjuntas, humanas e de convívio.
A morte da Marina era evitável assim como todas as mortes no trânsito.
Atualmente a Ciclocidade move uma Ação Civil Pública contra a prefeitura de São Paulo em razão do aumento das velocidades máximas permitidas nas marginais Pinheiros e Tietê, aumento esse incompatível com as vias e com a legislação. A ação encontra-se neste momento aguardando julgamento no Superior Tribunal de Justiça REsp nº 1905113SP (2020/0012015-9) e tem por objetivo demonstrar que o aumento das velocidades sem comprovação técnica e científica, sobre seus impactos em toda a cidade serve apenas para comunicar que “pode acelerar que está tudo bem, mortes acontecem” e, claro, onerar ainda mais a saúde pública com acidentados e mutilados.
É preciso frear a epidemia de mortes no trânsito e, para isso, responsabilizar de fato quem é omisso e cúmplice dessa tragédia diária.
Todas as mortes no trânsito são evitáveis e não aceitaremos a normalização dessa barbárie que nos acostumamos a chamar de “acidentes”.
É preciso resgatar a escala humana das cidades e, para isso, entre outras ações, adequar as velocidades das vias para que seja possível a convivência entre os modos de deslocamento.