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“Obras cicloviárias de baixa complexidade devem ser tão simples quanto a bicicleta”

 

Na última sexta-feira (20/3), um dia após a manifestação que reuniu cerca de 300 ciclistas na Avenida Paulista para protestar contra a decisão do Ministério Público do Estado de paralisar as ciclovias em São Paulo, o Diretor de Participação da Ciclocidade, Daniel Guth, deu uma entrevista à Rádio CBN. Nela, Guth fala sobre como a ação do MPE é equivocada ao colocar em xeque a política pública relacionada à implantação de um sistema cicloviário; que as obras das estruturas cicloviárias não deveriam ser tratadas como obras complexas quando não são; responde à questão do alegado impacto no comércio por causa das ciclovias; e fala ainda dos próximos passos.

A Ciclocidade entrou com uma petição na 5ª Vara da Fazenda para que a sociedade possa argumentar no processo em favor do uso da bicicleta na cidade, como parte interessada. “Essa é a principal ação da sociedade, que não é só mobilizar, não é só organizar protestos, mas sim atuar com a cabeça e o pescoço dentro do processo no Poder Judiciário”, conta Guth.

Veja abaixo a transcrição da entrevista.

 

CBN – Na noite desta quinta-feira, cerca de 80 ciclistas ocuparam a Avenida Paulista em manifestação contra essa decisão da Justiça. O grupo ainda chegou a pedalar pelo centro da cidade. Entre os manifestantes estava Daniel Guth, que é consultor na área de mobilidade e Diretor de Participação da Ciclocidade – Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo, com quem vamos conversar agora. Daniel Guth, bom dia!

Guth – Bom dia, Tiago, bom dia aos ouvintes.

CBN – Daniel, chama muito a atenção que a Prefeitura não tenha apresentado esses projetos para a Justiça. A Justiça considerou que a ciclovia melhor projetadas era apenas a ciclovia da Paulista, que de fato tinha um estudo bem feito. Essa falta de um planejamento melhor é uma situação que seria suficiente para evitar que essa questão fosse parar na Justiça. Agora, como reagir a uma colocação como essa? De qualquer forma, para os ciclistas, a ciclovia mal colocada ainda seria melhor do que nenhuma, é isso?

Guth – Tiago, não é nesse maniqueísmo não. Na verdade, tem-se que estabelecer o que exatamente a promotora colocou nos termos da ação dela. Ela ontem deu uma suavizada no texto dela da ação, mas em todo momento ela coloca em xeque a política pública em si. Não a forma como a Prefeitura está executando, não apenas a forma, mas a política pública. Ou seja, ela questiona o porquê de se investir em bicicleta em São Paulo, qual a importância disso, qual é de fato a participação desse modal e qual poderá ser a participação desse modal caso a gente invista nele. Ou seja, ela está colocando em xeque a importância de ter bicicleta na cidade ou não, o que é muito grave. Primeiro, para uma promotora. Segundo, para qualquer pensamento mais contemporâneo de política urbana em qualquer cidade do mundo. Então, quando ela diz que a questão é somente o método empregado no investimento cicloviário, ela está se contradizendo inclusive em seu próprio texto. O próprio juiz põe isso nos termos da liminar.

CBN – Mas de qualquer forma, o que fica é a decisão da Justiça, não é? A Justiça pede que a Prefeitura apresente o planejamento e isso pode atrasar a colocação de novas ciclovias.

Guth – Na verdade, não. A Justiça pede que a Prefeitura apresente estudos de impacto local e global na implantação dessas estruturas. Em nenhum momento, veja, [ruído na linha].

CBN – Estamos com dificuldades para conversar com o Daniel Guth. Estamos conversando com ele sobre essa decisão da Justiça. Você acabou de ouvir a reportagem de Joyce Ribeiro explicando que a Justiça paralisou a implantação de todas as ciclovias da capital paulista com exceção da Avenida Paulista, baseada em uma ação civil proposta pelo Ministério Público. O Daniel Guth vinha conversando com a gente e explicando a natureza dessa decisão da Justiça que, na sua visão, Daniel, questiona muito mais a questão da política pública do que exatamente a questão de como esse projeto foi implantado. É isso?

Guth – Não. O juiz já deu uma liminar diferente do pedido da promotora. O juiz, na verdade, questiona inclusive, na liminar dele, na ação dele, a postura da promotora ao exigir um nível de detalhamento técnico e um nível de informações que para qualquer outorga da cidade não se exige tradicionalmente. Tem que entender que obra de sistema cicloviário, ciclofaixa, ciclovias de baixa complexidade, como são essas que estão sendo implantadas em São Paulo, elas não deveriam exigir, da forma como a promotora coloca, o mesmo que uma obra viária como um viaduto, um túnel ou uma obra de grande complexidade. Então, tem que se entender que são intervenções no viário simples, que garantem a segurança do ciclista, mas que ela tem que permanecer simples. Como é a bicicleta. É simples, é funcional, é rápida e é fácil. A gente não pode exigir uma grande complexidade de gastos, uma grande complexidade de obras para algo que é tão simples quanto a bicicleta.

CBN – Mas de qualquer forma, apesar de ser simples, ela tem impactos muito grandes na vida das pessoas. Comerciantes normalmente são os que mais reclamam da instalação das ciclovias, não é, Daniel?

Guth – Não, Tiago. Veja, que impacto é esse? Em primeiro lugar, todas essas obras foram implantadas em locais de estacionamento, ou seja, locais em que se tinha a privatização do espaço público. Em nenhuma dessas implantações foi retirada faixa de rolamento. Ou seja, não teve nenhum impacto na circulação dos demais veículos na via. Nenhum impacto. Foram removidos somente os estacionamentos. Agora, quando você diz “o impacto na vida das pessoas”, eu estou entendendo que, em alguns locais, alguns comerciantes disseram que houve um impacto no comércio deles. Cadê o estudo sobre isso? Será que eles não estão sendo beneficiados ao investir em um novo modal? Será que eles, por exemplo, não poderiam entender que tanto o pedestre quanto o ciclista são os mais propensos a consumir no comércio de rua do que o carro, que está ali só de passagem e que dificilmente vai parar para consumir no seu comércio? Então, qual é esse impacto? É muito etéreo. A promotora se vale muito desses bordões que estão sendo soltos na imprensa, ou mesmo em parte da sociedade e da oposição na Câmara dos Vereadores, mas que não têm sustância, que não têm uma argumentação técnica consistente por trás.

CBN – Agora, Daniel Guth, de qualquer forma, dentro desse documento da promotora, desse parecer, o documento tem umas 60 páginas, muitas delas mostrando alguns lugares onde é clara a falta de planejamento. Existe uma ciclovia em um lugar onde não tem calçada, muito próximo da parede das casas, lugares onde há defeitos no asfalto e simplesmente se passou a ciclovia por cima sem corrigir o defeito no asfalto, árvores no caminho, postes no caminho… Também há casos de ciclovias que, em vez fazer o que se planejava, que era tirar a vaga de zona azul, tirou a faixa de rolamento, por exemplo, na Albuquerque Lins, que tem dado congestionamento. Todas essas situações não demonstram essa falta de planejamento da Prefeitura, Daniel?

Guth – Não, Tiago, veja… Problemas pontuais de implantação têm de ser solucionados. O laudo da promotora, se você olhar, 98% dele é de problemas pontuais, como buracos, bocas de lobo, grelhas, acúmulos de água… São esses tipos de problema. Esses problemas têm que ser solucionados. Veja, é tapar buraco, recapeamento, é pintura, sinalização… São questões simples. Isso não pode colocar em xeque a política pública. Se eu usar o mesmo argumento que ela se utilizou e que você está utilizando aqui para qualquer rua da cidade de São Paulo, então eu tenho que proibir a circulação de carros em todas essas ruas. Porque não há uma rua de São Paulo que não tenha buraco! Não há uma rua de São Paulo que não tenha uma falha no asfalto. Então, isso não coloca em xeque o direito de ir e vir das pessoas, que é um direito constitucional inclusive dos ciclistas, tem que se estender aos ciclistas. A garantia de segurança desses ciclistas está garantida no Plano Diretor Estratégico da cidade de São Paulo, que está garantido na Política Nacional de Mobilidade Urbana… Veja, a gente tem todo um arcabouço de legislações que nos dão o direito a essa implantação desse sistema cicloviário. Não é um buraco ou um acúmulo de água numa ciclovia que vai colocar isso em xeque. É isso o que a promotora se equivocou na ação dela. O próprio juiz já retira isso. Eu acho, e sua colocação é correta, que os problemas de implantação têm que ser solucionados. A gente tem uma Câmara Temática de Bicicleta junto à Prefeitura para acompanhar essa implantação e a gente tem feito esses apontamentos. Tudo o que a promotora colocou no relatório dela a gente já tinha repassado à CET e à Prefeitura para solucionar. Agora, a gente conhece o Poder Público. É um transatlântico que demora, ele é muito pesado, é muito demorado. Mas é claro que a gente vai, com o tempo, solucionando esses problemas. O que a gente não pode, e isso parte da sociedade tem feito, é colocar a política pública em xeque. Se tem um problema de buraco, esse buraco tem que ser resolvido. Ponto. Não tem que questionar a ciclovia como um todo. Tem que questionar o buraco. Tapa o buraco, legal. Resolveu? Vamos avançar. A gente não pode ter retrocesso.

CBN – Daniel Guth, a partir de agora, vocês cicloativistas vão pensar em novos protestos, vão pensar em algum apoio à Prefeitura, tentar ajudar na apresentação desses projetos? Quais são os próximos passos agora?

Guth – Bom, primeiro foram 300 ciclistas ontem, e não 80, como a matéria apontou aí. A gente organiza protestos e passeios, a gente sabe bem quantos ciclistas têm numa via. Tem novos protestos marcados, mas o importante é que, ontem, antes mesmo de o juiz expedir a liminar, a gente entrou com uma petição na 5ª Vara da Fazenda para a sociedade atuar como assistente nesse processo. Ou seja, nós queremos ser uma terceira parte interessada nesse processo a argumentar em favor do uso da bicicleta na cidade, em favor da promoção do uso da bicicleta. E aí agora, provavelmente hoje, o mesmo juiz que expediu a liminar vai deliberar sobre o nosso pedido. Com certeza ele vai aceitar para que a gente possa, nas próximas instâncias desse processo, atuar dentro do Poder Judiciário defendendo a bicicleta na cidade de São Paulo. Essa é a principal ação da sociedade, que não é só mobilizar, não é só organizar protestos, mas sim atuar com a cabeça e o pescoço dentro do processo no Poder Judiciário.

CBN – Ok. Daniel Guth, consultor na área de mobilidade, Diretor de Participação da Ciclocidade – Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo, muito obrigado pela conversa conosco aqui no CBN São Paulo. Bom dia!

Guth – Bom dia. Obrigado, Tiago, obrigado aos ouvintes.

 

Fonte: Rádio CBN.

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