Precisamos falar sobre Gênero – A importância de políticas de ciclomobilidade inclusivas
Veja o texto do GT Gênero que saiu publicado na edição #7 da Revista Velô.
Para ver a publicação original, acesse este link (páginas 30 a 32).
O caráter de transformação social e empoderamento que o simples “andar de bicicleta” carrega consigo é irrefutável e precisa estar ao alcance de todos.
A invenção das bicicletas como conhecemos hoje se deu em meados dos anos 1870 e, desde muito cedo, elas foram apropriadas pelas camadas populares e movimentos sociais. O movimento feminista logo percebeu o potencial que o ciclismo carregava – é célebre a frase de Susan Anthony, uma maiores sufragistas norte-americanas, que não sem motivos nos lembra que “A bicicleta fez mais pela emancipação da mulher do que qualquer outra coisa no mundo.”
Na luta pelos direitos políticos e trabalhistas das mulheres, a bicicleta se mostrou como o meio que as libertou da dependência dos maridos para os deslocamentos e exerceu até mesmo impacto no vestuário – frequentemente atribui-se ao ciclismo a adoção e popularização das calças no guarda-roupa feminino. As magrelas foram aliadas importantes do gênero feminino na conquista e ocupação do espaço público e da liberdade de movimento nas cidades, além de se mostrarem como uma opção de lazer e para a prática de esportes.
O uso da bicicleta em São Paulo não é recente e nem decorrência de políticas específicas de uma ou outra gestão. Apesar de se mostrar bastante em evidência nos dias de hoje e voltar a ocupar espaço significativo nos bairros centrais, há relatos de bicicletas circulando pela cidade desde a virada do século XX. Naquela época, andar de bicicleta na cidade já estava relacionado à locomoção, assim como a fins esportivos e recreativos – nas periferias e fora dos centros urbanos o ciclismo nunca foi novidade e nem tampouco questionado, graças a seu baixo custo e praticidade. Já naqueles tempos existem indícios de mulheres pedalando pelas ruas paulistanas.
O caráter político do ciclismo urbano chega ao Brasil com o processo de redemocratização. A popularização da bicicleta e uso nos bairros mais nobres da cidade (e, consequentemente, seu ganho de visibilidade pelos atores da máquina pública) acompanha a trajetória já conhecida em outros países. Assim, se o boom do cicloativismo na cidade está atrelado à massa crítica, o primeiro grupo de ciclistas de São Paulo tem início com a conhecida ciclista Renata Falzoni. Na década de 1980, Falzoni liderou a fundação do “Night Biker’s Club” na tentativa de extrapolar seu uso como meio de locomoção. O grupo liderado por Falzoni assumiu um papel importante na inclusão do texto relacionado a bicicleta no Código de Trânsito Brasileiro já na década 1990. Outra figura importante em São Paulo é Teresa D’Aprile, que fundou em 1992 o “Saia na Noite”, atualmente o maior e mais antigo grupo de pedal exclusivamente feminino da cidade.
Contexto atual
As mulheres foram algumas das primeiras protagonistas a levantarem ativamente a bandeira da bicicleta como meio de locomoção viável e mostrar à população que outras maneiras de se locomover para além dos carros e do transporte público são possíveis. Entretanto, a presença do gênero feminino nas contagens de ciclistas realizadas por diversas organizações que lutam por visibilidade e pela adoção de políticas de ciclomobilidade atualmente é tímida. Não podemos esquecer que foi o atropelamento de Márcia Prado e Juliana Dias – duas figuras importantes no movimento cicloativista paulistano – a orientar as lutas dos últimos anos que culminaram na construção da ciclovia na Avenida Paulista, a via mais simbólica da maior cidade da América do Sul.
Em levantamento realizado com dados de 39 contagens de ciclistas nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Aracaju, Recife e Niterói entre 2008 e 2015, constatou-se que a média histórica da presença de ciclistas mulheres não ultrapassa 6,9% – ao passo que o gênero feminino corresponde a 51% da população brasileira. A fim de investigar tais números e pensar em como fomentar o aumento do uso da bicicleta pelas mulheres, a Ciclocidade – Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo – criou o GT Gênero.
Enxergamos a bicicleta como um elemento central na apropriação do espaço público pelas pessoas e, para tal, é preciso que os diferentes gêneros também estejam representados. Precisamos entender, por exemplo, os motivos pelos quais é tão expressiva a pouca participação de mulheres dentre ciclistas e como promover uma mudança nesse cenário. Os papéis sociais feminino e masculino historicamente construídos exercem grande influência nesses dados – mas como revertê-los a nosso favor? Os desafios são grandes, mas o trabalho em busca de cidades realmente equânimes, nas quais as políticas sejam pensadas de forma inclusiva precisa ser encarado. O caráter de transformação social e empoderamento que o simples “andar de bicicleta” carrega consigo é irrefutável e precisa estar ao alcance de todos.
Para além de buscar reinterpretar a divisão entre os gêneros feminino e masculino dentro do universo da bicicleta, também é um objetivo futuro do GT abarcar a questão LGBT. Se queremos que a discussão sobre gênero na agenda da ciclomobilidade seja verdadeiramente includente, esse público também tem que ser considerado.
Texto: Marina Harkot e Yuri Vasquez. Fotografia: Sylvia Sanchez.
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